05 abril, 2009

Fantasia de Sangue

Medo de seus próprios pensamentos. Mesmo sabendo ter controle sobre seu corpo, temia por pensar aquilo.

Em um fim de semana, o local de sua residência era agitado, porque jovens reuniam-se em plena rua para "festejar". Via sua privacidade invadida, não queria escutar aquelas músicas estridentes de conteúdo fútil que partiam daqueles muitos carros estacionados na esquina e pelo resto da rua. Os gritos e roncos de motor adentravam seu lar, fechando as janelas não barrava o som totalmente e sentia-se apertado, o quarto ficava sem ventilação, pensava no seu direito de manter as janelas abertas. O barulho da rua entrava em sua mente, impedindo-o de pensar em coisas que julgava mais importante que a letra daquelas músicas. Olhava para a rua, via pessoas se divertindo, bebendo, como se não tivessem importância com os outros, e pior, consigo, ao colocarem-se em risco num local como aquele: carros, bebida, homens tentando conquistar mulheres a qualquer preço, muito imprudente. Certo, mas isso passou a não incomodar, e sim os pensamentos que apareceram. Não bastava desejar a experiência de ser incomodado daquela forma para os baderneiros. Queria dar um 'chega sangrento'. Até refletiu sobre o que ele teria feito para evitar perturbar os outros nas reuniões com seus próprios amigos, sabia olhar para si também, mas o 'basta de sangue' tinha calado esse seu lado...culpado. Alguém teria que pagar, isso assustaria os demais perturbadores, talvez nunca mais voltassem.

Fantasia.... Via-se, em instantes descontínuos, no topo de seu edifício, de onde teria ampla visão de tudo. Com seu rifle de precisão, equipado com uma mira telescópica, procurava seu alvo. Difícil escolher quem pagaria por todos, mas era ela, a garota loira de blusa verde. Estava sendo paquerada por um rapaz com aparência desleixada, mas bem apresentado de uma maneira despreocupada: barba mal feita, cabelos castanhos grandes e bem penteados, camisa, calsa jeans e sapatos de couro opacos. Queria dar um susto em todos, mas ele seria o mais abalado, estaria tão perto dela... A moça parecia simpática, bonita para os padrões de beleza, corpo atlético. Agia de forma descontrolada, bebia uísque com gelo, dançava, não estava nem aí... away. Podia estar errado, mas nosso caçador, bem posicionado teve mais má impressão dele do que da garota. O verdadeiro caçador estava no topo do prédio, sentindo o frio daquela noite acentuado pela ausência de proteção do vento. Irônico: sentia o frio em sua alma. Ele falava no seu ouvido, ela dava uma volta, dançava perto dele (isso ao som de mistas músicas que falavam de sexo, traição, crime...), se abraçavam... E agora? Qual o alvo? Não mudou sua decisão, achou muito imprudente da parte da 'menina' dopar-se daquela forma. O que o confortava? Era o fato de que talvez o rapaz morresse em um acidente de trânsito ao sair desesperado dali dirigindo bêbado e deixando o cadáver abandonado, da mesma forma que faria com ela no dia seguinte depois de levá-la ao seu apartamento. Aí a oportunidade o tiro bem dado, ela estava em seus braços, ele aproximou o rosto para beijá-la... fantasia de sangue.

Bem, esqueceu a garota, a arma, deixou o topo do prédio e o frio de lá de cima. Preocupação... seria aquele pansamento normal? Se tivesse oportunidade de ter um rifle de precisão, faria aquilo? Agradecia por não ter a oportunidade e um pouco de sensatez. Agora tinha consciência, teve medo de seus pensamentos, de sua condenção se tivesse feito aquilo. Só que era tarde, viu que já estava condenado. Qual a consequência para sua fantasia de sangue?

-Dedicado a Duke Spoon.

5 comentários:

  1. Did he shoot, or did he not?

    Lendo com pouca atenção, eu me deixei levar pela fantasia do wannabe de atirador, talvez porque eu tenha esse tipo de fantasia eu mesmo.

    Did he shoot, or did he not?
    For I'd have shot.

    Lendo com atenção suficiente, lembrei de mim por comparação, não o eu das minhas fantasias (assassinas? Doentias?), mas o eu da realidade. O eu que as tem, o eu que mergulha na escuridão da própria imaginação, o corpo inerte, quase morto, a respiração estável e tranquila como no sono. O eu que trava sua mira no alvo, o olho atrás da luneta sendo a única parte tensa do corpo; o eu que prende a respiração e, gentil e lentamente, preme o gatilho do fuzil, até que a explosão da pólvora e a expulsão do projétil configurem uma leve surpresa que não surpreende. O eu que vê, através da luneta, os olhos humanos se soltarem do rosto com o impacto que explode uma cabeça.

    O eu que mata de longe, toma um café, e vai embora.



    Doentio, não?

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  2. Então, eu lembro de mim, agora. Lembro do meu eu que acorda do devaneio, antes levado pela doentia fantasia de sangue.

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  3. Obrigado por degustar Duke Spoon, sabia que esse conto tinha a tua cara. Dedico ele pra ti então.
    O rifle de precisão foi perfeito para o fazer o efeito que eu desejava, de longe, de sua casa.
    Muito boa a tua frase final, encaixaria bem, pena que não posso mudar o conto.

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  4. Hahaha! Muito obrigado por ter dedicado o conto a mim.

    Bem, a minha frase não pode ser colocada lá, mas está ali nas degustações. Este é o formato de um blog, não é?

    Sobre o termo "rifle" que tu usa: é melhor se acostumar, camarada. "Rifle é no exército americano. Aqui no Brasil isso se chama fuzil!!!"

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  5. Lembrei-me de uma citação de nietzsche durante a leitura do conto: "Ao olhar dentro de um abismo, o abismo também olha pra dentro de você...", que se refere à perversidade dentro do estudo da frenologia, creio. Todas as ações morais do ser humano são reguladas através da perversidade, que é o seu impulso mais primitivo, cuja função é efetivar aquilo que acreditamos ser o ERRADO a se fazer, e a única barreira que nos impede de efetuar tal ato é a nossa consciência moral.

    Esse impulso paradoxal torna-se completamente relativo diante das infinitas formas de interpretação de "certo" e "errado", mostrando-se um sentimento (podemos chamá-lo assim?) extremamente individual.

    Ainda não citado, a perversidade é caracterizada como estranhamente "sedutora". Sedutora ao ponto de o único modo de escapar dela é com um tremendo esforço repentino da pessoa para desviar-se da tarefa. Desviar-se do mergulho ao misterioso abismo que te chama e te deixa pensando sobre a refrescante brisa e a sensação de voar durante a queda; que te faz esquecer da possibilidade de estalar seu crânio contra o chão ou de cair para sempre; que te prende à extremidade de onde não se pode ver se há fundo ou não, pois infindável é a escuridão. Uma escuridão tão negra quanto a cor do café, que nos enganaria a quantidade restante na xícara se não estivéssemos cientes das dimensões da mesma.

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